6.2.09

No carrossel dos meus sonhos


« Sofia, eu disse na sala Volto já, e vim aqui, e sentei-me na sanita, diante do espelho onde todas as manhãs me barbeio, para falar contigo. Falta-me o teu sorriso, as tuas mãos no meu corpo, as cócegas dos teus pés nos meus pés. Falta-me o cheiro bom do teu cabelo. Este quarto de banho é um aquário de azulejos que o foco do tecto obliquamente ilumina, varando a água da noite em que o meu rosto se move em gestos lentos de anémona, os meus braços adquirem o espasmo de adeus sem ossos de polvo, o tronco reaprende a imobilidade branca dos corais. Quando ensaboo a cara, Sofia, sinto as escamas vítreas da pele nos meus dedos, os olhos tornam-se salientes e tristes como os dos gorazes na mesa da cozinha, nascem-me barbatanas de anjo nos sovacos. Dissolvo-me, parado, na banheira cheia, como imagino que os peixes morrem, evaporados numa espumazinha viscosa à tona, como decerto os peixes morram no rio, de órbitas apodrecidas a boiarem. Sofia, aqui, aurora após aurora, quando ainda nenhuma manhã sublinha de verde os telhados, e as luzes se destacam, nítidas, no escuro, à laia de verrugas fosforescentes e moles, venho verter a medo na retrete uma urina furtiva de criança, empurrado pela mão enorme da mãe que já não tenho.
(...)
Ia jurar que me esperavas, Sofia, para lá das paredes grossas de adobe que conservavam ainda, na dureza do barro, as marcas dos dedos anónimos que as haviam erguido, porque a porta de madeira se abriu, sem que lhe tocasse, para um escuro mais escuro do que o escuro da noite, mas povoado do silêncio das respirações e dos sussurros, de um cacarejo suave de galinhas adormecidas, de um dorso fugidio de cabíri, da tua mão, Sofia, que me guiava nas trevas, como um dia, quando for cego, a minha filha me guiará, me guiava através do escuro e do silêncio, e eu sentia a tua gargalhada vitoriosa imóvel na boca, riso de mulher liberta que nenhum pide, nenhum tropa, nenhum cipaio calaria, o teu riso que mesmo hoje, neste asséptico e odioso aquário de azulejos, continuo a escutar, sentado na sanita, olhando no espelho o meu rosto que irremediavelmente envelheceu, as falanges amarelas dos cigarros, os cabelos brancos que eu não tinha, as rugas, Sofia, que me vincam a testa do mole cansaço dos que em definitivo desistiram.
Ia jurar que a cova do colchão de palha possuía a exacta forma do meu corpo, como se desde sempre pacientemente me aguardasses. »
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António Lobo Antunes : Os cus de Judas
.é bom saber que o rodopio do meu cérebro é mais uma vez um algodão doce marcado pela forma dos teus dentes.
Nota: A Lea lê em voz alta poesias de Florbela Espanca e é muito bom de se ouvir. Ricas manhãs de trabalho. gosto. gosto muito.

1 comentário:

Anónimo disse...

E um extrato do livro Os Cus de Judas?

Obrigada